L.S.R. se preparava para dormir quando se alarmou com o barulho de tiros e bombas que provocavam gritaria pelas vielas de Paraisópolis – comunidade carente encravada no coração do Morumbi, o bairro mais rico da zona sul de São Paulo. Eram duas da madrugada do dia 2 de fevereiro quando L.S.R. abriu a fresta da janela para olhar o que estava acontecendo: oito policiais bloqueavam uma das esquinas da rua Melchior Giola para impedir a passagem dos moradores. “Isso durou cerca de 20 minutos.”
Três dias depois uma festa de família foi interrompida por tiros de um policial “muito bêbado com fuzil na mão”. “Eles falavam que quem mandava ali era a turma do careca”, relatou outra testemunha. Naquele mesmo dia, duas menores foram hospitalizadas depois de apanharem do “bonde do careca”.
Esses e outros 37 relatos a que a reportagem teve acesso foram entregues no início de março à Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP). “Se houve eventuais erros por parte de policiais, eles são exceção e estão sendo apurados com rigor”, diz a nota encaminhada pela assessoria da pasta.
A maior parte das ocorrências diz que o abuso ocorre entre 20h e 4h, horário em que os policiais impõem seu toque de recolher à base de balas de borracha e bombas de efeito moral. De acordo com os relatos, os excessos ocorrem nos dias pares, plantão policial do “bonde”, formado por dez soldados – oito de cabeça raspada.
O toque de recolher começou em outubro de 2012, quando a Operação Saturação passou a atuar na região em busca dos responsáveis por uma lista com os nomes de policiais que seriam assassinados . “Mais recentemente, outras ações têm sido desencadeadas, atendendo a chamados da comunidade, visando a paz pública e o combate à criminalidade”, diz a secretaria.
Foi em uma dessas incursões que uma menor de 17 anos perdeu a visão do olho esquerdo . Era dia 12 de janeiro quando a garota estacou à porta de um bar. “Os carecas começaram a lançar bombas e atirar. Começou uma correria. Uma bomba caiu do meu lado, eu me virei, mas fui atingida no olho.” Ela conta que o médico suspeitou de um estilhaço de bomba, “mas no laudo ele colocou que foi bala de borracha” .
Outras formas de intimidação também foram relatadas. Um policial “careca, alto e de grande porte físico”, por exemplo, foi acusado de furar os pneus de motos e carros estacionados na rua das Jangadas por volta das 4 da madrugada do dia 8 de fevereiro. Relato parecido foi testemunhado no dia 17, agora na rua Afonso de Oliveira.
Naquela mesma madrugada, “policiais jogaram bomba de pimenta dentro de uma casa em que mora um menino de três anos, que ficou sufocado”, descreve uma testemunha, que não se acostuma com o toque de recolher: “Eu fico tão nervosa que vou até para o hospital na cidade de Paraisópolis.”
Para Marisa Fefferman, psicóloga e pesquisadora da ONG Tribunal Popular, “os fatos em Paraisópolis também se repetem em outros bairros da periferia”. “Alguns membros da polícia criminalizam a população da periferia ao considerá-la inteira marginal.”
Ela espera que as ocorrências em Paraisópolis mobilizem a população da comunidade. “Que elas não se calem. É preciso organizar a população para denunciar o abuso do Estado. É inadmissível viver sob a ameaça de quem deveria proteger.”
“A Secretaria de Estado da Segurança Pública informa que já havia determinado a apuração imediata, tanto pela Polícia Civil quanto no âmbito da Corregedoria da PM, das denúncias encaminhadas pelas entidades. Nem a SSP nem a PM toleram ações abusivas por parte de policiais ou quaisquer outros agentes de Estado”, diz a nota encaminhada a reportagem .
Em respostas enviada a reportagem no início da noite da última sexta-feira (22), a Polícia Militar do Estado de São Paulo afirma “que não há e não haverá toque de recolher” em São Paulo. “A Polícia Militar desmente categoricamente que seus homens estejam praticando tal ato”, informa a nota.
Segundo a PM, “as denúncias apresentadas, à exceção do toque de recolher, estão sendo apuradas pelos órgãos competentes”. A nota ainda diz que é “importante frisar que pessoas envolvidas no caso da menina atingida por uma bala de borracha compareceram na última quinta-feira à Corregedoria da PM, mas não reconheceram nenhum dos PMS que atuam no local como autores dos supostos abusos. As testemunhas sequer identificaram qualquer policial como membro do dito “Bonde dos Carecas”.”
Fonte: IG